quinta-feira, 2 de outubro de 2008

País onde o fracasso é recompensado

"American way of life" ("estilo de vida americano"): vivem no aqui e no agora, sem fazer perguntas sobre o amanhã; um empresta dinheiro ao outro, mesmo que o dinheiro não lhes pertença; em vez disso, eles tomam quantias emprestadas com uma terceira pessoa, que prometeu conseguir o dinheiro com um quarto indivíduo - e assim por diante [a famosa pirâmide...]

Como todos sabem que há mais desejos do que dólares, o resultado inevitável foi uma certa lacuna de financiamento, ou déficit: capitalismo sem capital - o núcleo audacioso desta inovação não poderia funcionar.

Bilhões de dólares foram emprestados a pessoas que não tinham crédito para que elas adquirissem condomínios e casas de pouco valor - no jargão alegre e cínico dos banqueiros, esse tipo de empréstimo foi batizado de "NINA", acrônimo de "No Income, No Asset" ("sem renda, sem bens").

Em tempos melhores, alguém poderia ter chamado os banqueiros de empreendedores; atualmente, eles são chamados de irresponsáveis.

Antes mesmo do surgimento da expressão banco de investimentos, Karl Marx sabia como as duas coisas estavam vinculadas: "O capital tem tanto horror à ausência de lucro ou de um lucro muito pequeno quanto a natureza tem horror ao vácuo. Com um lucro apropriado, o capital é despertado; com 10% de lucro, ele pode ser usado em qualquer lugar; com 20%, torna-se vivaz; com 50%, fica positivamente ousado; com 100%, ele esmagará com os pés todas as leis humanas; e com 300%, não existe crime que ele não se disponha a cometer, ainda que se arrisque a ir para a cadeia".

Paulson já foi um banqueiro de Wall Street. Ele é um homem de boas maneiras e princípios firmes - em tempos normais, ele tem fé no mercado, em Deus e em George W. Bush, mas em tempos como estes, ele prefere depositar a sua fé no governo, no contribuinte e em Bush.

O governo está tentando extinguir o fogo com combustível, e não com água - na verdade, este é exatamente o mesmo combustível que deu início ao incêndio em Wall Street: dinheiro emprestado.

Coisas que na época da tradicionalmente honrada economia de mercado eram consideradas inseparáveis - como valor e consideração, salário e desempenho, risco e responsabilidade - estão sendo agora rasgadas em nome do governo - o capitalismo atualmente exibido pelos Estados Unidos é uma versão rota e degradada daquilo que costumava ser.

A conversa há muito necessária entre o governo e os governados ainda não se materializou - essa teria que ser uma conversa a respeito da relação entre a economia e os valores, sobre a recuperação daquilo que se perdeu, em vez de sobre expansão - a palavra frugalidade deveria ser reintroduzida.

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http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/10/01/ult2682u958.jhtm

01/10/2008
Estados Unidos da América: o país onde o fracasso é recompensado

Na atual crise financeira, o modelo de capitalismo dos Estados Unidos implodiu com um grande estrondo. Mas o governo Bush está tentando extinguir as chamas com mais combustível, em vez de água, e quer que os apostadores de Wall Street sejam recompensados pelo fracasso


Gabor Steingart
Em Washington (EUA)


Mais de cem anos atrás, o sociólogo alemão Georg Simmel criticou os bancos por ficarem cada vez maiores e mais poderosos do que as igrejas. A sua principal queixa - a de que o dinheiro é o novo deus dos nossos tempos - ainda é ouvida nos dias de hoje. Se Simmel estava certo, e há indicações de que de fato estava, a declaração teria que ser modificada para coadunar-se com as circunstâncias atuais: nem todo mundo reza para o mesmo deus.

Entre o grupo de adoradores de dinheiro, existem pelo menos três fés. A primeira é a dos Puritanos, que carregam pacientemente o dinheiro deles para as novas igrejas, esperando que ele se multiplique. O chinês típico, por exemplo, deposita 40% dos seus rendimentos em bancos. Que disciplina louvável! E há também os Pragmáticos. Estes poupam e emprestam, mas somente nesta ordem; a poupança é o fator que limita a ousadia deles. Esta linha é especialmente comum nos países germânicos, nos quais o banco de poupança é o templo religioso.

Finalmente, temos a comunidade religiosa dos Desinibidos, que é especialmente popular nos Estados Unidos. Os seus seguidores não se acanham em admitir a falta de cautela, o desperdício extravagante e a cobiça onipresente.

Eles chamam isto de "American way of life" ("estilo de vida americano"). Os seus membros vivem no aqui e no agora, sem fazer perguntas sobre o amanhã. Um empresta dinheiro ao outro, mesmo que o dinheiro não lhes pertença. Em vez disso, eles tomam quantias emprestadas com uma terceira pessoa, que prometeu conseguir o dinheiro com um quarto indivíduo - e assim por diante.

Southampton: o início do rastro de evidências


Esta comunidade religiosa é a mais fervorosa de todas. Há algum tempo, ela adotou a prática de tratar dinheiro antecipado como dinheiro real e de entender desejo como realidade. Atualmente ela não conta mais com nenhum fragmento de inibição.

Como todos sabiam que havia mais desejos do que dólares, o resultado inevitável foi uma certa lacuna de financiamento, ou déficit. Capitalismo sem capital - o núcleo audacioso desta inovação - não poderia funcionar. Não há salvação terrena - pelo menos esta foi uma conclusão quanto à qual o antigo Deus, aquele que carregou a cruz, e o novo deus, o que traz cifrões nos olhos, poderiam concordar.

E, assim, o inevitável ocorreu: o big bang. Três entre cada cinco bancos de investimento dos Estados Unidos perderam a independência, e os outros dois ainda estão afundando. Dois bancos de hipotecas e uma companhia de seguros encontram-se agora sob administração governamental.

O sistema financeiro global foi abalado, horrorizando os membros das outras duas fés. Pode haver três religiões, mas só há um céu. Se este cair, todos morrem.

Uma busca por evidências a fim de identificar os responsáveis deveria provavelmente começar em Southampton, um reduto da elite endinheirada. Nesta cidade, na parte leste de Long Island, perto da cidade de Nova York, é possível presenciar o quanto a cobiça pode ser atraente.

Trata-se de um lugar no qual as opções de ações foram transformadas às centenas em castelos de contos de fadas à beira-mar. Aproveitando-se das brechas tarifárias, os gurus financeiros de Wall Street conseguiram retirar os seus bônus da cidade mais ou menos intactos. Segundo a legislação tributária dos Estados Unidos, a compensação na forma de ações e garantias é taxada em menos da metade do índice mais elevado de impostos. Como resultado, a taxa tributária que incide sobre os rendimentos de muitos banqueiros é inferior àquela a que estão sujeitos os salários das suas secretárias.

Como menos transformou-se em mais


Os donos destas mansões à beira-mar não estão lá neste momento, de forma que uma investigação mais profunda requer uma viagem de trem até Nova York. No arranha-céu de Midtown que abriga os escritórios do Lehman Brothers, que está em processo de encerramento da sua história, há muito o que descobrir a respeito da seqüência de eventos. Bilhões de dólares foram emprestados a pessoas que não tinham crédito para que elas adquirissem condomínios e casas de pouco valor. No jargão alegre e cínico dos banqueiros, esse tipo de empréstimo foi batizado de "NINA", acrônimo de "No Income, No Asset" ("Sem renda, sem bens").

Mas mesmo assim as coisas andavam bem no mundo dos financiadores. O aumento miraculoso da oferta de dinheiro contribuiu para que o preço de imóveis subisse mais de 70% entre 2000 e 2006. A indústria conseguiu obter lucros aumentando o risco. Pelo menos na folha de balanço, o menos se transformou em mais.

Em tempos melhores, alguém poderia ter chamado os banqueiros de empreendedores; atualmente, eles são chamados de irresponsáveis. Antes mesmo do surgimento da expressão banco de investimentos, Karl Marx sabia como as duas coisas estavam vinculadas: "O capital tem tanto horror à ausência de lucro ou de um lucro muito pequeno quanto a natureza tem horror ao vácuo. Com um lucro apropriado, o capital é despertado; com 10% de lucro, ele pode ser usado em qualquer lugar; com 20%, torna-se vivaz; com 50%, fica positivamente ousado; com 100%, ele esmagará com os pés todas as leis humanas; e com 300%, não existe crime que ele não se disponha a cometer, ainda que se arrisque a ir para a cadeia".

A fé de Paulson


Agora o rastro conduz de Nova York a Washington, onde o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, tem o seu gabinete na Avenida Pensilvânia. O seu ministério é tão importante que há um portão ligando o subsolo do Departamento do Tesouro ao da Casa Branca. A atitude adotada por Paulson em relação aos bancos foi a de deixá-los atuar livremente, e ele agora pretende assumir os prejuízos dessas instituições. Para os altos círculos financeiros, ele tornou-se algo como uma garantia extra. O objetivo dele é eliminar a ameaça de cadeia - mas não a cobiça.

Paulson já foi um banqueiro de Wall Street. Ele é um homem de boas maneiras e princípios firmes. Em tempos normais, ele tem fé no mercado, em Deus e em George W. Bush. Mas em tempos como estes, ele prefere depositar a sua fé no governo, no contribuinte e em Bush.

Ao contrário do que muito se anunciou, Paulson não pretende utilizar as rendas obtidas com impostos para financiar o pacote de socorro aos bancos. Em vez disso, a intenção dele é tomar novos empréstimos de bilhões de dólares em nome do Tesouro dos Estados Unidos. "Detesto o fato de termos que fazer tal coisa, mas isto é a melhor do que a única outra alternativa", disse ele na semana passada. O presidente já deu o seu sinal de aprovação.

É isso o que acontece com as comunidades religiosas quando sofrem pressões: elas tornam-se ainda mais fervorosas. A idéia é que o mesmo tipo de pensamento de curto prazo que provocou o desastre vá agora pôr um fim a esta situação calamitosa. O governo está tentando extinguir o fogo com combustível, e não com água. Na verdade, este é exatamente o mesmo combustível que deu início ao incêndio em Wall Street: dinheiro emprestado.

A única diferença é que os novos empréstimos não virão do sexto, do sétimo ou do oitavo membro da comunidade religiosa. Eles serão coletados de todos os contribuintes. Isso significaria o fim da separação entre igreja e Estado, sendo que Wall Street se tornaria a religião nacional.

Os pontos em comum com as outras duas comunidades religiosas já estão desaparecendo. Coisas que na época da tradicionalmente honrada economia de mercado eram consideradas inseparáveis - como valor e consideração, salário e desempenho, risco e responsabilidade - estão sendo agora rasgadas em nome do governo. O capitalismo atualmente exibido pelos Estados Unidos é uma versão rota e degradada daquilo que costumava ser.

As ações dos políticos estão amplificando, em vez de mitigar, os efeitos do fracasso econômico. O capitalismo no estilo norte-americano ainda não morreu, mas está simplesmente preparando o seu próprio falecimento. A história destes dias é a história de uma morte que já foi anunciada. O que nos leva a Miss Marple.

Começou um jogo perigoso com o tempo


A detetive amadora imaginada por Agatha Christie, baseada na avó da escritora, era equipada com algo mais do que apenas um senso de humor e uma compreensão da natureza humana. Ela também tinha experiência em relação a coisas óbvias que ninguém acredita serem possíveis - até que elas aconteçam. No seu romance de 1950, "A Murder is Announced" ("Convite para um Homicídio"), Christie olhou para o futuro de maneira cômica.

A história transcorre mais ou menos assim: certa manhã, os cidadãos leram a seguinte mensagem nos classificados de um jornal local: "Um assassinato foi anunciado e ocorrerá na sexta-feira, 29 de outubro, em Little Paddocks, às 18h30. Amigos, por favor aceitem isto, a única intimação". Na hora designada, metade da vila reuniu-se na casa onde o assassinato supostamente aconteceria. A advertência é tratada como uma piada frívola, que ninguém desejaria rejeitar. Serve-se sherry aos presentes. O grupo é tomado por um pânico coletivo. Exatamente às 18h30, as luzes apagam-se.

"Não é maravilhoso?", diz uma voz feminina. "Estou trêmula".

Quando as luzes voltam a acender-se - para a surpresa de todos - um crime foi cometido. E agora nós, assim como os presentes na sala em Little Paddocks, estamos de pé, sussurrando, tomados pelo medo coletivo, aguardando para ver o que acontecerá a seguir. E ninguém acredita seriamente que um crime de verdade está prestes a ocorrer.

"Todos estavam em silêncio e ninguém se movia. Todos olharam para o relógio... Quando a última nota terminou, todas as luzes apagaram-se. Murmúrios de alegria e gritinhos femininos de satisfação foram ouvidos no escuro. 'Está começando', gritou a senhora Harmon, extasiada".

Um futuro vendido


Quem quer que espere receber um alerta antecipado deveria simplesmente expandir o seu campo de visão enquanto as luzes permanecerem acesas.

As companhias de cartão de crédito dos Estados Unidos não estão em uma situação significativamente melhor do que os bancos. Elas também venderam o futuro e até mesmo uma parcela do período posterior a ele.

A indústria automobilística norte-americana também se encontra seriamente combalida e tem dificuldades para estender as suas linhas de crédito no mercado aberto. A indústria perdeu mais de 300 mil empregos desde 1999. Mas qual é o benefício disto se são os gerentes - e não os trabalhadores - os culpados pela crise? A enorme conta dos Estados Unidos com a compra de petróleo - cerca de US$ 500 bilhões (? 345 bilhões) - é atualmente paga com dinheiro emprestado pela China. A cada dia útil, a dívida externa dos Estados Unidos aumenta em quase US$ 1 bilhão (? 690 milhões).

Provavelmente a pílula mais amarga de engolir nos Estados Unidos de hoje é o fato de os lares privados não estarem administrando as suas finanças de maneira melhor do que os executivos de corporações. Estes lares vêem o reflexo de suas imagens nos banqueiros de Wall Street, e não uma espécie de figura destorcida de si próprios. "De fato, não conheço nenhum país no qual o amor pelo dinheiro tenha se estabelecido tão fortemente no sentimento dos homens", observou Alexis de Tocqueville 170 anos atrás.

A conversa há muito necessária entre o governo e os governados ainda não se materializou. Essa teria que ser uma conversa a respeito da relação entre a economia e os valores, sobre a recuperação daquilo que se perdeu, em vez de sobre expansão. A palavra frugalidade - que desapareceu do vocabulário dos Desinibidos - deveria ser reintroduzida.

Mas não há sinal de que nada disso esteja acontecendo. Os Estados Unidos de hoje são muito estadunidenses para sobreviverem na sua forma atual. Mas os Estados Unidos atuais são também muito orgulhosos para perceberem isto. Os fiéis dificilmente permitiriam que alguém os convertesse.

Assim, a nossa compreensão dos acontecimentos continua ficando cada vez menos clara. Teve início um jogo perigoso com o tempo.

"O ruído de duas balas sacudiu a complacência da sala. Subitamente, o jogo não era mais um jogo. Alguém gritou... 'Luzes'. 'Não consegue encontrar um isqueiro?'...'Oh, Archie, quero sair daqui'".

Tradução: UOL

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Um comentário:

Anônimo disse...

Claudia, achei interessante este post do Colin Beavan (No Impact Man) sobre a crise econômica dos EUA e a relação com o meio ambiente.

http://noimpactman.typepad.com/blog/2008/10/the-economic-me.html

Ele só dá uma pincelada, mas mostra também a visão do Clinton, de que a área em que os EUA deveriam investir para se recuperar da crise do setor imobiliário, é energia limpa.

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