sexta-feira, 10 de outubro de 2008

PARA QUE SERVE O DINHEIRO?

Clóvis Cavalcanti

No cerne da crise financeira que envolve o mundo hoje encontra-se a questão do papel do dinheiro. O dinheiro é capital? É mercadoria? É símbolo? O que é afinal? A fim de chegar a uma resposta a essas indagações, vale lembrar que, historicamente, o dinheiro surgiu como instrumento para facilitar as trocas e que, fundamentalmente, essa função persiste até hoje. O dinheiro, como invenção do homem, talvez seja tão importante como a roda para sustentar a vida moderna, mas continua significando um meio de troca, sem o qual se teria o desconforto do escambo ou da troca direta de mercadorias. Seu papel é também o de uma unidade de conta (que muda de tamanho tal como um elástico de borracha, sem alterar o significado real daquilo que está medindo, haja vista que um mesmo automóvel, por exemplo, pode ser avaliado por grandezas diferentes tanto em reais quanto em dólares ou ienes, sem que sua substância mude). O papel do dinheiro é ainda o de reserva de valor, um valor que pode inchar ou encolher ao longo do tempo; pode ser o de uma dívida que rende juros; é ainda o de uma mercadoria (caso do ouro, v.g.), hoje não mais que uma curiosidade; e é, por fim, mas não menos importante, o de uma não-mercadoria simbólica (moeda papel), que vale porque acreditamos no que ela estampa em sua face.

Nas suas origens, o dinheiro era um papel (um certificado) emitido como garantia de um depósito em ouro (ou em outra mercadoria preciosa), numa relação de 1:1 (um para um) na instituição receptora (precursora dos bancos atuais) do depósito e seu título. O depositante deixava, digamos, 100 g do metal e recebia uma garantia de que lhe seria devolvido exatamente o mesmo volume contra a apresentação do certificado (pagando alguma coisa pelo serviço de guarda do metal pela instituição). Com o tempo e o desenvolvimento das trocas e do sistema bancário, a relação primitiva foi se alterando, de tal forma que, hoje, um banco só dispõe de liquidez, normalmente, para honrar algo como 20 por cento do que foi nele deixado por seus clientes (relação de 0,2:1). Ou seja, se, de repente, todos os correntistas de um banco resolvessem sacar seus valores  o que caracterizaria uma corrida ao estabelecimento de crédito em causa , haveria um colapso da instituição e a maioria dos seus clientes ficaria a ver navios (ou coisas piores). O que não permite que isso ocorra (graças a Deus!), espalhando-se como uma doença contagiosa para o sistema como um todo, é a confiança que todas as pessoas têm de que, a qualquer momento que se vá a um banco, este disporá do numerário para atender a suas necessidades. Quando se percebe que isso não vai suceder (caso em que uma economia está em crise severíssima, como a russa), pode até acontecer uma guerra civil.

Uma característica do dinheiro é sua capacidade de crescimento exponencial ilimitado. Se 1.000 reais forem deixados a uma taxa de juros real de 20 por cento ao ano durante 25 anos, o valor irá para 95,4 mil reais no final do período. Isso não causa maior transtorno material, pois a mudança de valor fica apenas como registro em livros contábeis. Já o crescimento de uma mercadoria está sujeito a limites. O exemplo clássico é o de colocar-se um grão de arroz na primeira casa (quadrado) de um tabuleiro de xadrez, dois grãos na segunda, quatro na terceira e assim por diante, sempre duplicando o montante precedente. A sexagésima quarta e última casa do tabuleiro, nessa seqüência, conterá tantos grãos quanto o número formado pelo algarismo 2 seguido de 63 zeros (isto é, 263), ou seja, mais de mil vezes a produção mundial anual dessa cultura! Quer dizer, o mundo real está sujeito a limites e não admite o crescimento exponencial sem fim. Tal crescimento acontece só com o dinheiro, com a riqueza expressa em papel. Por isso, quando o preço das ações cai, perde-se dinheiro como por evaporação: a riqueza some sem deixar rastro ou vestígios. Agora mesmo, nas bolsas mundiais houve um “desaparecimento” de 3 trilhões de dólares. Essa quantia jamais entrou nos bolsos das pessoas. Ficou sempre circulando nos sistemas de computadores dos agentes financeiros internacionais.

Entretanto, os abalos que o dinheiro sofre afetam de forma extraordinária (ou mais do que proporcionalmente) os humores daqueles que com ele lidam. É que, vivendo numa realidade distante do mundo econômico real, os especuladores de moeda e títulos giram numa economia de papel, na qual se faz a conversão direta de dinheiro em mais dinheiro sem qualquer referência às mercadorias, nem mesmo como uma etapa intermediária do processo. O que cresce aí é valor, não é a massa de coisa nenhuma. E valor é algo que pode assumir qualquer dimensão, haja vista que um carro que custe hoje 20 mil dólares nos Estados Unidos, terá o valor de 2,6 milhões de ienes no Japão e de 120 milhões de sucres no Equador. Nada disso, porém, muda o bem automóvel. Em outras palavras, o dinheiro pode assumir qualquer valor, crescendo rápida e artificialmente, como for conveniente: matematicamente hiperfecundo, o dinheiro, porém, é fisicamente desprovido de substância.

Como diz o Prêmio Nobel de economia James Tobin (de quem tenho a honra de ser ex-aluno), a riqueza de uma comunidade possui a dimensão dos “bens reais acumulados através do investimento real passado e a dos ‘bens’ fiduciários ou de papel, manufaturados pelo governo a partir do ar diáfano”. Por isso, vista pelos habitantes de um país, a riqueza excede o estoque de capital tangível. “Esta é uma ilusão”, diz Tobin, uma ilusão que “pode ser mantida sem arranhão na medida em que a sociedade não tentar efetivamente converter toda a sua riqueza de papel em bens”. Em outras palavras, tem-se uma riqueza virtual, de papel, a qual, no final de contas, termina sendo a que mais sensibiliza os agentes financeiros. É a inconsistência dessa riqueza, que demonstra claramente que dinheiro não é capital, que torna tão perigosa a manutenção do equilíbrio monetário. Este, por sua vez, só se ajusta como um instrumento da sociedade graças ao crédito de confiança atribuído a um papel que, na essência, na essência, não passa de papel sujo. Devemos orar para que essa confiança não mude, pois, se isso acontecesse, a crise hoje seria infinitamente pior.

Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.


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