VALOR 17/03/2009
Colapso global como freio de arrumação
José Eli da Veiga
O colapso global ajuda a pensar no seu contrário: o crescimento econômico, um dos mais amplos e profundos anseios coletivos contemporâneos. E oportuna referência está no trabalho de uma comissão formada por 18 sumidades de 16 países, sob a liderança de Spence, Solow e Leipziger, publicado em meados de 2008 pelo Banco Mundial: "The Growth Report - Strategies for Sustained Growth and Inclusive Development".
A comissão propôs que o mundo se mirasse no exemplo de 13 países que, desde 1950, conseguiram que seus PIB crescessem a uma taxa média igual ou superior a 7% em período de ao menos 25 anos: Botsuana, Brasil, China, Hong Kong, Indonésia, Japão, Coreia, Malásia, Malta, Omã, Cingapura, Taiwan e Tailândia. Sem sequer discutir se poderia ser possível para o conjunto aquilo que foi possível para uma de suas partes, caindo assim na conhecida falácia da composição, o relatório pretende que o PIB mundial possa mais do que quintuplicar em um quarto de século.
Isso não quer dizer que tenham sido ignorados problemas como o do aquecimento global, ou de disparada dos preços relativos de produtos energéticos e alimentares. Ao contrário, na quarta parte do documento eles são considerados como "novas tendências globais", junto com temas mais políticos, como as resistências à globalização. Só que tudo isso é entendido como exógeno. Nada teria a ver com o próprio crescimento econômico. Nem mesmo as dificuldades para se reduzir emissões de gases de efeito estufa chegam a ser consideradas nesse cenário de multiplicação do PIB mundial por 5,4 em um quarto de século.
Por que essas 18 altas autoridades em ciência econômica imaginam que aumentos do PIB não tenham custos socioambientais? A resposta aponta um raciocínio muito comum, que também é dos mais falaciosos. Como em um dólar de PIB é declinante a participação relativa de recursos como petróleo e minérios, deduz-se que não existam limites naturais ao crescimento econômico. Um duplo sofisma. Ignora que continua a aumentar o fluxo de recursos naturais que atravessa a economia, mesmo que diminua no PIB seu peso monetário relativo. E também ignora que o valor é sempre acrescentado pelos humanos, mediante sua força e meios que criam para produzir (trabalho e capital), o que inclui evidentemente conhecimento e inteligência. Raciocina-se como se fosse possível a criação de valor adicionado sem uma coisa à qual ele se adicione, em geral recursos naturais.
Quem ler esse relatório também ficará sem saber que desde meados da década de 1990 outros economistas comparam as evoluções do PIB às evoluções de indicadores de bem-estar. E que o fenômeno constatado nas nações mais avançadas foi de clara divergência a partir do início dos anos 1980, mostrando que em países de alto consumo os custos do crescimento passaram a superar seus benefícios, tornando-o antieconômico.
A constatação empírica de divergência entre desempenho econômico (medido pela evolução do produto) e a efetiva qualidade de vida, assim como entre ela e as perspectivas das gerações futuras (sustentabilidade ambiental), são os primeiros sinais daquilo que no plano teórico havia sido antecipado desde 1966 pela genial contribuição de Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994). Foi quem mostrou que as teorias da ciência econômica simplesmente fazem de conta que não existe a termodinâmica, porque seria muito incômodo aceitar a sua segunda lei, da entropia.
Toda transformação energética envolve produção de calor que tende a se dissipar. E calor é a forma mais degradada de energia, pois embora parte dele possa ser recuperada para algum propósito útil, não é possível aproveitá-lo totalmente por causa de sua tendência à dissipação. A degradação energética tende a atingir um máximo em sistema isolado, como o universo. E não é possível reverter esse processo. O que quer dizer que o calor tende a se distribuir de maneira uniforme por todo o sistema. E calor uniformemente distribuído não pode ser aproveitado para gerar trabalho.
Como as mais diversas formas de vida são sistemas abertos, elas só se mantêm como oposição temporária ao
processo entrópico. Há entrada de energia e materiais, mas nem toda energia pode ser utilizada: o calor dissipado não é capaz de realizar trabalho. Energia e matéria aproveitáveis são de baixa entropia, e quando utilizadas na manutenção da organização do próprio sistema, são dissipadas, tornando-se de alta entropia. Os organismos vivos existem, crescem e se organizam importando energia e matéria de qualidade de fora de seus corpos, e exportando a entropia.
Por que essas 18 altas autoridades em ciência econômica imaginam que aumentos do PIB não tenham custos socioambientais? A resposta aponta um raciocínio muito comum, que também é dos mais falaciosos. Como em um dólar de PIB é declinante a participação relativa de recursos como petróleo e minérios, deduz-se que não existam limites naturais ao crescimento econômico. Um duplo sofisma. Ignora que continua a aumentar o fluxo de recursos naturais que atravessa a economia, mesmo que diminua no PIB seu peso monetário relativo. E também ignora que o valor é sempre acrescentado pelos humanos, mediante sua força e meios que criam para produzir (trabalho e capital), o que inclui evidentemente conhecimento e inteligência. Raciocina-se como se fosse possível a criação de valor adicionado sem uma coisa à qual ele se adicione, em geral recursos naturais.
Quem ler esse relatório também ficará sem saber que desde meados da década de 1990 outros economistas comparam as evoluções do PIB às evoluções de indicadores de bem-estar. E que o fenômeno constatado nas nações mais avançadas foi de clara divergência a partir do início dos anos 1980, mostrando que em países de alto consumo os custos do crescimento passaram a superar seus benefícios, tornando-o antieconômico.
A constatação empírica de divergência entre desempenho econômico (medido pela evolução do produto) e a efetiva qualidade de vida, assim como entre ela e as perspectivas das gerações futuras (sustentabilidade ambiental), são os primeiros sinais daquilo que no plano teórico havia sido antecipado desde 1966 pela genial contribuição de Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994). Foi quem mostrou que as teorias da ciência econômica simplesmente fazem de conta que não existe a termodinâmica, porque seria muito incômodo aceitar a sua segunda lei, da entropia.
Toda transformação energética envolve produção de calor que tende a se dissipar. E calor é a forma mais degradada de energia, pois embora parte dele possa ser recuperada para algum propósito útil, não é possível aproveitá-lo totalmente por causa de sua tendência à dissipação. A degradação energética tende a atingir um máximo em sistema isolado, como o universo. E não é possível reverter esse processo. O que quer dizer que o calor tende a se distribuir de maneira uniforme por todo o sistema. E calor uniformemente distribuído não pode ser aproveitado para gerar trabalho.
Como as mais diversas formas de vida são sistemas abertos, elas só se mantêm como oposição temporária ao
processo entrópico. Há entrada de energia e materiais, mas nem toda energia pode ser utilizada: o calor dissipado não é capaz de realizar trabalho. Energia e matéria aproveitáveis são de baixa entropia, e quando utilizadas na manutenção da organização do próprio sistema, são dissipadas, tornando-se de alta entropia. Os organismos vivos existem, crescem e se organizam importando energia e matéria de qualidade de fora de seus corpos, e exportando a entropia.
Também é assim que a economia mantém sua organização material e cresce em escala: é aberta para a entrada de energia e materiais de qualidade, mas também para a saída de resíduos. Toda a vida econômica se alimenta de energia e matéria de baixa entropia, e gera como subprodutos resíduos de alta entropia. Por isso, não pode ser entendida como moto-perpétuo.
No entanto, obcecados pelo fluxo circular monetário, os economistas convencionais se esqueceram do fluxo metabólico real. Por isso chegam ao absurdo de pensar que o crescimento econômico nada tenha a ver com a capacidade do ambiente de assimilar os resíduos, colocando em risco suas funções de suporte à vida. E não há como se saber qual será o nível de impacto a partir do qual os danos ao ambiente serão irreversíveis.
A mais prática decorrência é que poderá ser muito melhor que o PIB mundial aumente, por exemplo, a uma taxa média de 2%, dobrando em 35 anos, em vez de 7%, quintuplicando em 24. Mais importante ainda será que essa média resulte de taxas das mais elevadas em uma centena de países periféricos e das mais baixas nas duas ou três dezenas de países centrais. Só isso poderá permitir que a qualidade do crescimento econômico seja compatível com a conservação ecossistêmica, gerando algo bem mais próximo do generoso ideal que só emergiu no final do século passado: o desenvolvimento sustentável. E, neste caso, o colapso global terá sido um bem vindo freio de arrumação.
José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA-USP e autor de diversos livros sobre desenvolvimento sustentável, escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br
No entanto, obcecados pelo fluxo circular monetário, os economistas convencionais se esqueceram do fluxo metabólico real. Por isso chegam ao absurdo de pensar que o crescimento econômico nada tenha a ver com a capacidade do ambiente de assimilar os resíduos, colocando em risco suas funções de suporte à vida. E não há como se saber qual será o nível de impacto a partir do qual os danos ao ambiente serão irreversíveis.
A mais prática decorrência é que poderá ser muito melhor que o PIB mundial aumente, por exemplo, a uma taxa média de 2%, dobrando em 35 anos, em vez de 7%, quintuplicando em 24. Mais importante ainda será que essa média resulte de taxas das mais elevadas em uma centena de países periféricos e das mais baixas nas duas ou três dezenas de países centrais. Só isso poderá permitir que a qualidade do crescimento econômico seja compatível com a conservação ecossistêmica, gerando algo bem mais próximo do generoso ideal que só emergiu no final do século passado: o desenvolvimento sustentável. E, neste caso, o colapso global terá sido um bem vindo freio de arrumação.
José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA-USP e autor de diversos livros sobre desenvolvimento sustentável, escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br
2 comentários:
A mais prática decorrência é que poderá ser muito melhor que o PIB mundial aumente, por exemplo, a uma taxa média de 2%, dobrando em 35 anos, em vez de 7%, quintuplicando em 24.
Poderá ser muito melhor pra quem? Com certeza poderá ser muito melhor para alguém (indivíduos ou meio-ambiente) que não se beneficiará desse "crescimento" vertiginoso.
No nosso cenário "nada fracassa mais que o êxito".
Eu gostei do texto do professor José Eli até essa parte. Existe uma visão paramentada, baseada em crenças tecnológicas, que presssupõem a possível divisão do crescimento (mais aqui nos pobres e menos lá entre os ricos). A questão é (estou preparando uma resposta) é que crescimento nenhum é bem vindo, seja 0,2 ou 7% enquanto for linear (extrai-consome-descarta), enquanto atender uma sociedade de consumo inconsciente, enquanto tratar a Terra como lixeira, enquanto for uma economia focada no desperdício, na desigualdade e no descarte imediato dos bens, enquanto assumir que a economia pode ser maior que o planeta e não enxergar a limitude planetária espacial (a mais óbvia) e a ecológica e enquanto fizer uso de materiais degenerativos dos quais a natureza não pode se defender, como plásticos, petróleo, combustíveis fósseis, pesticidas, fertilizantes químicos, etc.
Obrigado pelo comentário.
Abraço Hugo
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