E se a Amazônia morrer?
MARCELO LEITE
Foi só com uns 40 anos de idade, ali por 1997, que tive o privilégio de ver o chão de um pedaço de floresta amazônica forrado com as flores do piquiá, no mês de setembro. Num livrinho de 2001 (A Floresta Amazônica, da série Folha Explica), registrei o desejo de que minhas filhas pudessem um dia ter a mesma visão da gigantesca árvore.
Elas já são adultas e não tiveram tal sorte, embora já tenham ido à Amazônia. Mas suas chances diminuem a cada dia.
É só uma possibilidade. Mas aprendi a temer a Lei de Murphy (algo como: "tudo que pode dar errado acaba dando errado").
Refiro-me a um artigo de pesquisadores britânicos e brasileiros publicados sexta passada no periódico "Science", sob a liderança de Simon Lewis, da Universidade de Leeds.
Mais uma peça no quebra-cabeças científico que anuncia a possibilidade, cada vez menos improvável, de que a floresta amazônica venha a perecer sob os rigores da mudança do clima. O grupo, que inclui integrantes da ONG de pesquisa Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), comparou assecas de 2005 e 2010 na região e concluiu: a do ano passado foi muito pior.
Provavelmente você ouviu falar mais da estiagem de meia década atrás. No entanto, os cálculos desse pessoal indicam que 37% das florestas da região, em 2005, sofreram deficiência grave de chuvas --contra 57% em 2010. Como muitas árvores já estavam debilitadas pelo estresse hídrico anterior, o time prevê que a mortalidade será muito maior, com potencial para emitir 5 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera.
Essa quantidade é mais ou menos equivalente a tudo que os Estados Unidos, pior vilão do aquecimento global, liberam na atmosfera a cada ano como produto da queima de combustíveis fósseis. É carbono em quantidade para ninguém pôr defeito.
Lewis alerta que há muita incerteza envolvida nesses cálculos, mas eles combinam --e muito-- com o pior cenário imaginado para a Amazônia: a mortalidade progressiva dessa que é uma das florestas tropicais mais ricas do planeta, em quantidade de espécies.
A mortalidade de árvores acabaria por transformá-la numa fisionomia vegetal menos densa e diversa, mais parecida com um cerradão. Alguns modelos de computador sugerem que o processo pode tornar-se irreversível com um nível de destruição a partir de 40%. Quase 20% da floresta já foram para o saco no Brasil.
O cenário algo apocalíptico é conhecido como "dieback", em inglês. Surgiu de uma longa tradição de estudos em que desponta a figura do americano Tom Lovejoy, que passou muitos anos estudando o efeito da fragmentação da floresta amazônica perto de Manaus.
Ele ajudou a formar gente do valor de Daniel Nepstad (co-autor de Lewis no artigo), que dedicou anos de sua vida a pesquisas em Paragominas, na região do Tapajós e em Belém, sede do Ipam. Nepstad contribuiu, por sua vez, para formar muitos parceiros brasileiros de estudos, como Paulo Brando e Paulo Moutinho.
Foi na companhia de Moutinho, aliás, que topei com o pé de piquiá deitando flores. Durante uma caminhada para conhecer o projeto Seca-Floresta, experimento muito doido que o Ipam montou perto de Santarém (PA) justamente para simular os efeitos de secas prolongadas sobre a floresta, retirando dela a maior parte da água da chuva com auxílio de centenas de painéis de plástico.
Isso foi na década de 1990. Duas décadas depois, as piores hipóteses então investigadas chegam mais perto de virar realidade. Uma realidade que, se vingarem as previsões mais pessimistas, pode tornar a visão do piquiá cada vez mais rara, quiçá acabar com ela.
O que será de nós todos, no Brasil, se a Amazônia agonizar?