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Sobre a nossa brasileira, não vou dizer o nome nem a empresa onde ela trabalha, vou apenas dizer como é a vida dela. Ela acorda às três da manhã, para chegar no seu primeiro emprego, às cinco. Como todo cidadão de uma cidade feroz como São Paulo, onde o trânsito flui mal, mas é matador para quem mais precisa dele e vem de longe, nossa brasileira viaja aos trancos e barrancos. Os carros particulares cheio de pessoas esquisitas, barram a passagem dos coletivos, nem se dão ao trabalho de perceber que não têm prioridade alguma. Quando a cidade planejou corredores de ônibus foi uma grita geral, alguns brasileiros endinheirados que como de praxe nada respeitam, pegando acostamentos em estradas lotadas quando voltam das suas praias, também não respeitam esses corredores.
Nossa heroína chega às 5 da manhã para trabalhar até às 13 horas. Nesse emprego, onde trabalha de segunda a sábado ela ganha 520 reais brutos de uma empresa terceirizada pela grande corporação. O líquido para ela é 400 mais tickets alimentação e refeição somados de 150. Tudo dá 550. O trabalho dela é indispensável, pois ela limpa um andar inteiro de um prédio enorme apenas com a ajuda de mais uma outra funcionária igual a ela. A empresa terceirizada lucra em cima dela, tem um nome pomposo, é uma multinacional. Como esse dinheiro não dá, tem um seu segundo emprego numa casa de família, onde se preocupa com uma criança de 12 anos que passa a tarde com ela, com as camisas do marido da patroa, o jantar, etc. Ganha outros 500, a sorte é que nesse emprego ela não trabalha no sábado. O trabalho dela não poderia ser mais fundamental ou valioso. A patroa é uma pessoa boa, mas de uma forma geral mulheres histéricas e insatisfeitas no casamento, são exigentes de trabalhos domésticos e tratam nossas heroínas como se fossem máquinas. Poucos as enxergam como seres humanos antes de mais nada, nem se preocupam em dar uma perspectiva, um curso de gastronomia, nutrição, atendimento, plano de saúde, etc. Sem perspectiva.
Ela é uma heroína e se diz feliz e está sempre sorridente. Ao contrário das celebridades ou modeletes da vida, ela é realmente linda. Ela está entre os milhões de anônimos que nas estatísticas oficiais parecem estar vivendo melhor e ganhando mais. Tudo balela. Como todas as classes trabalhadoras, ela só tem uma folga por semana. A pressão do trabalho em cima das pessoas é enorme em todas as classes. André Gorz e Jeremy Rifkin têm toda razão, vivemos uma escravidão disfarçada, ou melhor, remunerada, mas que seja da pior forma possível, para um sistema que busca cada vez menos empregos. Rifkin fala em milagres, Gorz em abolição.
Como ela são milhões, feliz por ter um emprego, ao lado dos desesperados sem opção alguma nas vastas periferias desse país e do mundo, escondidas das estatísticas que os economistas se enganam e com elas enganam a todos: crescimento traz emprego e prosperidade permanente para todos. O adjetivo está errado, porque tudo em economia, tal como é esse sistema, é efêmero e o pronome indefinido no final correto é alguns ou cada vez menos pessoas. É uma galhofa os textos “técnicos” que enaltecem resultados como esses.
Perguntei para nossa heroína anônima se a vida dela melhorou e ela disse que não. Perguntei em quem ela iria votar no dia 31 de outubro e a resposta foi “ninguém”. Sobre os filhos, ela quer que as quatro filhas (são dois meninos) nem os tenham, é muito difícil criar uma criança nesse país. Mas "meus filhos são lindos e sou feliz", disse-me ela. Sorriso lindo.
Ela vale um milhão de celebridades desse país que não têm vergonha alguma em dizer que compraram um apartamento de 2.000 metros quadrados por 14 milhões de reais ou que compram iates, fazendas, e muito mais coisas que nem precisam. A riqueza e o poder foram feitos para servir e não para se servir deles e as reencarnações são ou uma segunda chance ou a última chance, para quem acredita nisso. No caso da nossa heroína, tenho certeza que ela agüenta o tranco dessa vida com uma ajuda externa incrível. No mundo material, a pergunta que todos deveriam fazer é “por que há quatro bilhões de pessoas vivendo em situação precaríssima num planeta cuja capacidade de sustentar toda a vida está sendo destruída veloz e perigosamente, apenas para atender a demanda de uma pequena minoria. Essa minoria, além de não viver bem, parece não se importar com nada além dos seus próprios umbigos.
Em outras palavras, enquanto a classe empresarial e governante continuar com seus simpósios de sustentabilidade e responsabilidade social com heroínas como essa debaixo dos seus narizes, não há como terem crédito algum. O sistema anterior – “se não podem poluir ou explorar mão de obra nos seus países, venham para cá” – era bem menos hipócrita.
O triste é que a história da nossa heroína é “usada” pela megalomania do crescimento e embora ela justifique a sanha construtora e empreendedora dos governos e empresas no mundo todo, ela pouco se beneficiará disso. É a falsa lembrança da história da nossa heroína que leva a todos ignorarem as idéias e ideais dos economistas ecológicos e cientistas que buscam um equilíbrio entre o nosso subsistema econômico-humano dentro do sistema maior hospedeiro, a Terra.
Hugo Penteado
3 comentários:
Huguinho do céu, que texto lindo! Amo você, sabia? E você ganhou um monte de fãs da rede estadual de ensino também! Parabéns,e que os deuses mantenham tua disposição nessa luta injusta contra o Sistema :)
Huguinho do céu, que texto lindo! Amo você, sabia? E você ganhou um monte de fãs da rede estadual de ensino também! Parabéns,e que os deuses mantenham tua disposição nessa luta injusta contra o Sistema :)
Parabéns, Hugo, pelo belíssimo texto.
Não só belo, mas importante para que olhos se abram, nessa sociedade da "escravidão do crachá".
Um grande abraço,
Romana
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