As águas baixaram tão depressa como subiram, mas já não havia o que recuperar
O PIOR está por vir. Fiquei com essa certeza depois de visitar as cidades inundadas pelo rio Mundaú, em Alagoas.
O Mundaú corre entre as montanhas que um dia abrigaram o quilombo de Zumbi, paisagem que enche os olhos de beleza. Várias cidades foram construídas no vale à beira do rio, como reza a tradição brasileira.
Plantações de cana e de laranja, um pouco de gado e nada mais; riqueza de alguns, pobreza e desemprego universal.
Um homem que tem a sorte de conseguir trabalho na colheita de laranjas nesta época do ano ganha R$ 40 por semana. Sai mais barato do que um escravo do século 18, com casa e comida por conta do fazendeiro.
No meio de junho choveu sem parar. No dia 18, as águas subiram ameaçadoras; mulheres, homens e as crianças graúdas se apressaram em levar os pertences para as partes mais altas das casas.
Entretidos nessa operação, de repente perceberam que desta vez a cheia não era como as anteriores: em cinco minutos as águas chegaram até a cintura. Não houve tempo para nada, só lhes restou agarrar os filhos e as pessoas de idade e fugir.
Poucos minutos mais, um tsunami passou por cima de tudo transformando ruas inteiras em montes de tijolos, ferros retorcidos, postes derrubados, árvores e coqueiros arrancados pela raiz.
Saíram com a roupa do corpo. Nem documentos levaram.
As águas baixaram tão depressa como subiram, mas já não havia o que recuperar: 19 cidades estavam arrasadas; 80 mil pessoas ficaram sem ter para onde ir. Com os encanamentos destruídos, as ruas cobertas de lama se transformaram em esgoto a céu aberto, e a água potável desapareceu. Começaram os saques e os roubos; instalou-se o caos.
Aqueles com parentes e amigos em áreas mais seguras puderam ser acolhidos, ainda que de forma precária. Os demais foram encaminhados para igrejas, escolas e os poucos prédios públicos que resistiram à enxurrada.
Chegou o Exército para impor ordem, controlar a distribuição das doações e ajudar com máquinas a retirada do entulho. A Defesa Civil tratou de garantir o suprimento de água, alimentar e abrigar os que haviam perdido tudo. Os bombeiros do Rio de Janeiro montaram um hospital de campanha em Santana do Mundaú. O Ministério da Saúde tomou as primeiras providências para atender a população. A ajuda não tardou, mas foi insuficiente.
Semana passada, quando cheguei à região com uma equipe da TV Globo para chamar a atenção sobre as epidemias que se disseminam depois das enchentes, fiquei chocado: ao vivo, a devastação era mil vezes mais assombrosa do que as imagens dos telejornais. O drama humano, mais grave ainda.
Sem ter para onde ir, as pessoas perambulavam pelo que restou das ruas. Alguns cavocavam os escombros à procura de algum objeto utilizável, enquanto outros formavam fila nos centros de distribuição de alimentos e agasalhos.
Em Murici, cidade situada a 48 km de Maceió, a situação em que se encontram os desabrigados ilustra o despreparo das autoridades e a falta de solidariedade humana com que tratamos tragédias desse tipo em nosso país.
A maior parte dos que ficaram sem casa foi alojada em quatro galpões recém-construídos à beira da estrada que liga a Maceió. Para chegar a eles é preciso atravessar uma área enlameada, com lixo amontoado à espera de recolhimento, cachorros imundos e crianças brincando com os pés atolados no lodo contaminado.
Em cada galpão espremem-se cerca de cinquenta famílias, que delimitam seu espaço com lençóis, cobertores velhos e pedaços de cortinas. No interior desses cubículos, pessoas saudáveis, doentes e um mundo de crianças dormem amontoadas em colchões doados e camas imprestáveis.
Para as cinquenta famílias, apenas dois banheiros em condições indescritíveis, sem água corrente. Para dar a descarga, é preciso ir buscá-la com um balde nas caixas d'água dispostas na beira da estrada, abastecidas por caminhões-pipa.
No interior dos galpões, o cheiro azedo que adquirem as aglomerações humanas em ambientes mal ventilados.
Já vi essa cena e senti o mesmo cheiro nas celas apinhadas da antiga Casa de Detenção. Com a diferença de que no Carandiru as cortinas delimitavam o espaço individual de cada ladrão, enquanto em Murici abrigam famílias inteiras, com cinco ou seis crianças.
FOLHA DE S. PAULO, Sábado 17 de Julho de 2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário